Programa quer vetar conteúdo político e de gênero nas escolas.
A
sala de aula passou a ser considerado um espaço aberto para discussão tendo
como mediador a figura do professor. No entanto, essa liberdade de ensinar e o
pluralismo de ideias estão sendo colocados em questão diante do Programa Escola
Sem Partido, que já se dissemina em vários estados. Na Paraíba, a cidade de
Picuí já aprovou um projeto de lei semelhante para implantá-lo nas 14 escolas
da rede municipal. Dentre os pontos do projeto que geram mais polêmica estão a
não doutrinação política e ideológica em sala de aula e a ausência de discussão
sobre gênero.
Além
dos estudantes serem considerados vítimas de doutrinação pelo programa, os
professores deverão seguir todas as medidas, que têm ser afixadas em salas de
aulas do ensino fundamental e médio, sendo proibidos conteúdos de cunho religioso
e moral e a aplicação dos postulados da ideologia de gênero, que é a forma como
nos reconhecemos e desejamos que os outros nos reconheçam, independente do sexo
biológico (homem e mulher).
Para
a professora da Unidade Acadêmica de Educação da UFCG, Luciana Leandro, o
programa “Escola sem partido” não é apenas inconstitucional, como também
extremamente contraditório. Em primeiro lugar, afirma ser contra a “prática de
doutrinação política e ideológica”, no entanto está baseado em uma ideologia
política muito clara: a da suposta “neutralidade” dos conhecimentos e do ato de
ensinar.
Em
segundo lugar, apontou Luciana, o programa também promove grande polêmica e
confusão ao utilizar o termo “identidade biológica de sexo”, afirmando que a
identidade sexual seja uma questão meramente biológica e desconsiderando que a
construção identitária do gênero humano seja um processo histórico, social e
contextual. “Mais uma vez, o programa defende uma ideologia clara: a de que o
biológico/natural predomina sobre o histórico/social, quando ambos são
essenciais para a compreensão do ser humano em sua totalidade”, ressaltou.
Já
o fundador do programa, o advogado Miguel Nagib, disse que “ao tratar de
questões controvertidas, o professor tem que apresentar os dois lados e não a
sua opinião. E o que a Constituição permite aos docentes é a liberdade de
cátedra, o que não confunde com a liberdade de expressão”.
Na
Paraíba
A
cidade de Picuí, no Seridó paraibano, foi o segundo município do país a aprovar
projeto de lei que exige neutralidade política nas escolas e inibe a prática da
doutrinação política e ideológica em sala de aula. O projeto de lei 008/2015,
de autoria do vereador Joaquim Vidal de Negreiros Filho, foi aprovado pela
Câmara, mas vetado pelo prefeito Acácio Araújo.
“Apresentei
esse projeto e voltarei a apresentá-lo ano que vem com novo prefeito para
acabar com a politicagem em sala de aula, além de isentar os docentes de
discutirem sobre religião e sexo nas escolas”, afirmou o vereador. Já o
prefeito alegou que vetou o projeto porque acredita que o professor seria
“castrado” em sala de aula.
Análise
da notícia
Por
Luciana Leandro da Silva, professora da Unidade Acadêmica de Educação (UAEd) da
Universidade Federal de Campina Grande (UFCG)
Escola
sem partido, professore(a)s sem liberdade
Como
se já não bastasse a pouca confiança que a sociedade deposita em nós
professores, submetidos cada vez mais a um intenso processo de proletarização e
de precarização da nossa formação e do nosso trabalho, estamos experimentando sérias
ameaças no que diz respeito à autonomia e à liberdade de ensino, direitos
garantidos constitucionalmente.
Por
meio de um estudo amplo e rigoroso da questão, sabemos que a escola tem
cumprido historicamente um papel político-ideológico na sociedade, de modo a
garantir a (re)produção de uma determinada cultura. Nesse sentido, ela tem
assumido a função de transmitir aqueles que são os conhecimentos oriundos de
uma cultura/ideologia dominante, deixando de lado, muitas vezes, outros
conhecimentos, culturas e formas de interpretação da realidade.
Ao
longo dos séculos XIX e XX, as teorias críticas possibilitaram uma reflexão
mais ampla sobre essa questão, ao questionar o currículo oficial e
desmistificar a visão de que a ideologia dominante fosse interpretada como
“verdade absoluta” ou como algo “natural e neutro”.
Percebemos,
assim, que o “Escola sem partido” tem um partido e uma filiação ideológica
clara e, por isso, é um programa que condena a si mesmo. Ao contrário do
afirmado em seu texto, acaba por cercear a liberdade e intensificar ainda mais
a desconfiança e o descrédito da sociedade no trabalho dos professores.
Por
fim, tal programa abre espaço para a criminalização da atividade docente, algo
que nos faz retroceder, no mínimo, ao século XVII, quando Galileu Galilei foi
condenado pela Santa Inquisição por defender que a terra se movia em torno do
sol.
JPOnline
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