Transmissão de Zika por pernilongo comum requer 'mudança radical' em medidas de controle.
Imagem ilustrativa - Da internet |
A bióloga Constância Ayres, da
Fiocruz Pernambuco, fez uma descoberta inédita que tem o potencial de
proporcionar um salto no conhecimento dos cientistas sobre o vírus Zika, e
mudar radicalmente a estratégia brasileira de prevenção dele.
Ayres conseguiu encontrar, pela
primeira vez, pernilongos carregando o vírus na natureza.
Na quinta-feira, a Fiocruz anunciou
oficialmente que o mosquito Culex quinquefasciatus, conhecido como muriçoca ou
pernilongo doméstico, também pode transmitir o vírus que causa microcefalia e
malformações em bebês.
Até então, cientistas acreditavam
que o mosquito Aedes aegypti era o principal vetor do vírus no Brasil. Agora,
de acordo com Ayres, os cientistas precisam determinar qual das duas espécies é
a mais importante na epidemia de Zika no Brasil.
Durante o anúncio, a Fiocruz afirmou
que, até que se compreenda a importância do pernilongo na epidemia, a política
de controle da Zika continuará focada no Aedes aegypti.
Mas dependendo dos resultados, seria
necessária uma "mudança radical" na atual estratégia atual de
controle da epidemia, afirma a pesquisadora.
"Não existem estratégias de
controle do Culex no Brasil. Isso vai ter de mudar radicalmente", diz.
Em entrevista à BBC Brasil, Ayres
esclareceu a dúvidas sobre o andamento da pesquisa e as implicações de sua
descoberta.
1. Como determinou-se que o
pernilongo pode transmitir o vírus Zika?
A pesquisa analisou 500 pernilongos
capturados na Região Metropolitana do Recife. Eles foram obtidos em locais onde
havia casos notificados de Zika, segundo Ayres, para aumentar a possibilidade
de se encontrar o vírus no ambiente.
Os pernilongos foram divididos em 80
grupos e o vírus foi encontrado em três deles. Em dois destes grupos, de acordo
com a Fiocruz, os mosquitos não estavam alimentados. Isso demonstra "que o
vírus estava disseminado no organismo do inseto e não (foi contraído) em uma
alimentação recente num hospedeiro infectado".
No laboratório, a equipe de Ayres
alimentou os mosquitos com uma mistura de sangue e vírus, para entender como o
Zika se replica dentro dos insetos.
Em seguida, os pesquisadores
investigaram o intestino e a glândula salivar dos mosquitos. Se o pernilongo
não fosse vetor, seu intestino bloquearia o desenvolvimento do vírus dentro do
organismo.
Mas, se o vírus conseguisse se
replicar, ele chegaria até a glândula salivar do Culex e poderia ser
transmitido para humanos durante a picada.
Dessa forma, a equipe de Ayres
confirmou que o Culex pode carregar o vírus em seu organismo. Amostras da
saliva dos pernilongos infectados foram analisadas, e continham quantidades de
vírus semelhantes às encontradas na saliva do Aedes aegypti.
Segundo Ayres, outra descoberta da
Fiocruz Pernambuco dá força à hipótese: um grupo de pesquisa percebeu que a
distribuição geográfica da filariose (elefantíase) e do Zika vírus em Recife é
muito semelhante.
Em Recife, o Culex quinquefasciatus
é o único mosquito que transmite o parasita que causa a elefantíase.
"Somos a única área do Brasil endêmica para essa doença", explica a
bióloga.
"Cerca de 85% das mães que
tiveram bebês com microcefalia por causa do Zika estão em áreas muito
precárias, sem saneamento básico, onde ocorre mais a filariose. Isso pode
explicar a participação do Culex na transmissão da Zika e dar suporte à nossa
hipótese."
"O Aedes aegypti, por outro
lado, está mais distribuído na cidade. Vemos que a dengue é uma doença bem
democrática, não está só em áreas precárias", afirma.
2. O pernilongo também pode ser
vetor de tranmissão de dengue e chikungunya?
De acordo com a Fiocruz, a pesquisa
deu prioridade ao vírus Zika por causa da epidemia da doença no Brasil e sua
ligação com a microcefalia.
Apesar da epidemia de chikungunya,
que também atinge principalmente Estados do Nordeste, ainda não se sabe se esta
doença também pode ser transmitida pelo Culex.
Ayres afirma que o vírus da dengue
já foi encontrado em pernilongos coletados em campo, mas ainda não se confirmou
se ele pode ser seu vetor.
3. Se o pernilongo for o principal
transmissor, qual seria o impacto desta descoberta?
Para Ayres, isso significaria a
necessidade de alterar a estratégia atual de controle da epidemia de Zika,
completamente focada no controle da população do Aedes aegypti.
"Não existem estratégias de
controle do Culex no Brasil. Isso vai ter de mudar radicalmente, e é por isso
que as autoridades exigem muita cautela e mais comprovação. É natural que seja
assim", diz.
O pernilongo tem hábitos diferentes
do Aedes aegypti. É mais ativo à noite, por exemplo, o que tornaria importante
a proteção com repelentes e roupas compridas também neste horário,
especialmente para gestantes.
Ele também prefere colocar seus ovos
em locais extremamente poluídos como esgotos, fossas e canaletas, o que,
segundo a pesquisadora, tornaria as medidas de saneamento básico ainda mais
"urgentes" para evitar novos casos de Zika e microcefalia em bairros
mais precários.
"O saneamento básico não
erradicará o mosquito, mas vai ajudar no seu controle populacional. As medidas
de saneamento ajudam a manter o mosquito em um nível no qual não teremos grande
epidemia, apenas casos esporádicos da doença."
4. Quais são os próximos passos da
pesquisa?
Segundo Ayres, sua equipe agora
investigará qual é exatamente a capacidade vetorial do Culex, ou seja, quão
eficiente ele é para carregar e transmitir o vírus.
"Já sabemos que a taxa de
infecção natural do Culex é semelhante à do Aedes aegypti, mas isso envolve
outros aspectos biológicos do mosquito na natureza: o tamanho da sua população,
a longevidade dessas espécies, o número de picadas que dão no homem, se
preferem se alimentar do sangue humano ou não", afirma.
"Quando tivermos essas
informações, poderemos saber qual das duas espécies tem maior importância na
transmissão do Zika."
De acordo com a bióloga, a população
de pernilongo em Recife é 20 vezes maior que a do Aedes aegypti. Mas, apesar
desta vantagem populacional do Culex, o Aedes pica mais vezes uma pessoa para
se alimentar.
É necessário entender, por exemplo,
se picar várias vezes faz do Aedes vetor mais competente de transmissão do
vírus.
A equipe pernambucana também
investiga a possibilidade de a fêmea do pernilongo transmitir o vírus para sua
prole ainda nos ovos.
"Coletamos os ovos dos
mosquitos infectados, as larvas eclodiram, deixamos crescer até virarem adultos
e congelamos o material. Vamos analisá-lo", explica Ayres.
"Se conseguirmos detectar o
Zika, significa que eles contraíram o vírus da mãe. Isso tem importância
epidemiológica, porque é mais uma forma de o vírus se manter presente na
natureza. Ele poderia permanecer no ambiente sem necessariamente ter de passar
por humanos."
No ciclo de transmissão de doenças
como o Zika, o Aedes aegypti pica uma pessoa doente, se infecta e leva o vírus
para outras pessoas. Ele não transmite o Zika, até onde se sabe, a seus ovos.
5. A descoberta do Culex como vetor
do Zika é preocupante para outros países do mundo?
De acordo com a bióloga, o Culex
quinquefasciatus está presente em todas as áreas urbanas de regiões tropicais,
subtropicais e temperadas - de clima mais frio, como países do Norte da Europa,
Canadá e Austrália. Já o Aedes aegypti fica restrito às regiões tropicais e
subtropicais.
Ela esclarece, no entanto, que
mostrar a capacidade do Culex de transmitir Zika no Brasil não significa que o
mesmo ocorreria, por exemplo, nos Estados Unidos.
"Existe a possibilidade, mas
cada população deve ser investigada, principalmente porque o Culex
quinquefasciatus, que é o que temos no Brasil, é parte de um complexo de
espécies", diz.
"Nos Estados Unidos existem
outras subformas dessa espécie de mosquito. E não sabemos ainda se a
competência vetorial de todas as espécies é a mesma."
*Colaborou
Gabriela Belém, de Recife para a BBC Brasil
Nenhum comentário