No Rio, ex-militares ensinam táticas do Exército a facções criminosas.
Paraquedistas e fuzileiros
navais dispensados das Forças Armadas cobram de R$ 3 mil a R$ 5 mil por hora
para ensinar bandidos a usar com eficiência fuzis e pistolas, a atuar em
terrenos irregulares – como favelas – e a definir rotas de fuga.
Os serviços de inteligência
das Forças Armadas e da polícia do Rio investigam ex-militares que estão
treinando integrantes de facções criminosas com táticas usadas pelo Exército e
pela Marinha. O Estado apurou que esses instrutores, principalmente
ex-paraquedistas e ex-fuzileiros navais, recebem de R$ 3 mil a R$ 5 mil por
hora de aula – valor que pode chegar a R$ 50 mil em uma boa semana. Eles
preparam bandidos no uso de fuzis, pistolas e granadas, para atuar em áreas
urbanas irregulares, como favelas, e a definir rotas de fuga.
Há cinco meses, durante
operação de cerco no Morro da Rocinha, o comportamento dos traficantes
fortemente armados chamou a atenção do setor de inteligência. “Seguia claros
padrões profissionais, até no gestual de comando”, relatou um oficial do
Exército. Em grupos de 8 a 12 homens, os criminosos se deslocavam de forma
coordenada, fazendo disparos seletivos e evitando o contato direto, “exatamente
como faria a tropa em um ambiente adverso”. Entre as lições ensinadas pelos
ex-militares também estão o emprego da camuflagem e técnicas de enfrentamento.
Já foram rastreados entre 10
e 12 ex-combatentes, na faixa dos 28 anos. O número pode ser maior. O temor de
que ex-militares sejam cooptados por facções foi explicitado anteontem pelo
novo ministro da Defesa, o general da reserva Joaquim Silva e Luna, no Rio.
Segundo ele, as Forças Armadas dispensam entre 75 mil e 85 mil reservistas
todos os anos. “Esse pessoal passa pelas Forças, é treinado, adestrado,
preparado e, quando sai, às vezes volta ao desemprego. E eles podem se tornar
vulneráveis nesse momento, podem ser cooptados.”
Os militares que passam pelo
Batalhão de Operações Especiais dos Fuzileiros Navais fazem cursos e estágios
de guerra na selva, na Caatinga, no Pantanal. Aprendem a saltar de paraquedas e
a executar tiros de precisão, combate pessoal e ações anfíbias. São oficiais,
subtenentes e sargentos. No Comando de Operações Especiais do Exército, o ciclo
mais abrangente prepara por 25 semanas para missões de reconhecimento,
contraterrorismo, resgate, evasão, sabotagem, guerrilha e contraguerrilha. Por
isso são tão valorizados pelas facções no treinamento de seus “soldados”.
Economia. Para um analista,
ex-oficial da PM fluminense, “dar adestramento para manusear os armamentos é um
recurso das facções para evitar os disparos a esmo, aumentar o poder de fogo e
reduzir a perda de material, afinal, um fuzil AK-47 novo, posto no morro, custa
R$ 30 mil”. A assessoria especializada dos ex-militares também orienta
aquisições dos contrabandistas e evita desperdícios. “Até recentemente, os
‘xerifes’ do tráfico compravam tudo o que aparecesse. Em um depósito em
Manguinhos foi achado um projétil de artilharia de 155 mm. Enorme,
impressionante e totalmente inútil para quem não tem um canhão”, contou o
ex-PM. Hoje, a composição do arsenal das facções é mais rigorosa. Abrange fuzis
de calibre 7.62mm e 5.56mm, pistolas 9mm, granadas de alto poder letal em
pequeno raio (de 5 a 15 metros) e explosivos plásticos.
Os comandos do Exército e da
Marinha tratam esses casos como assunto policial. “São criminosos comuns,
perderam o vínculo com as Forças. Depois de presos, são submetidos à Justiça
comum. É isso o que acontece”, explicou um general. Na avaliação do oficial,
com larga experiência na missão de estabilização do Haiti, “não há gente de
ponta entre esses marginais: os melhores quadros ficam na tropa, mesmo depois
de cumprido seu termo de trabalho”.
Origem. Esse treinamento por
ex-militares foi detectado no Rio pela primeira vez em 2000. Desde então, houve
cinco casos em que os protagonistas foram identificados. Ao menos um morreu em
confronto com a PM. Um deles – o ex-paraquedista Marcelo Soares Medeiros, o
Marcelo PQD – acabou evoluindo na estrutura do crime. Passou de instrutor e
intermediador na compra de armas a gerente e, depois, controlador de um ponto
de distribuição de drogas no Morro do Dendê, na Ilha do Governador. Preso desde
2007, cumpre pena em Bangu.
Há um ano, foi apontado como
o responsável pela construção de um túnel, com iluminação, ventilação e sistema
de drenagem, que seria usado em uma fuga. Marcelo PQD (a sigla identifica os
paraquedistas) esteve alinhado ao Comando Vermelho (CV), mas, na prisão, mudou
de facção e agora integraria o Primeiro Comando da Capital (PCC), grupo
paulista.
Uma das estratégias do PCC é
qualificar seus membros. Além de ampliar o domínio no País, com núcleos em
presídios, montou uma rede internacional que abrange Colômbia, Venezuela,
Bolívia e Paraguai – de onde saem as linhas de fornecimento e entre postagem de
drogas e armas. O PCC está armado sobre um sofisticado organograma, equivalente
ao adotado por empresas de grande porte.
Segundo o setor de
inteligência do Ministério da Defesa, na arquitetura administrativa do PCC há
três níveis sob liderança de Marcos Herbas Camacho, o Marcola, encarcerado em
regime de segurança máxima em Presidente Venceslau, em São Paulo. Uma das
divisões da organização se dedica a obter equipamentos, criar depósitos seguros
para guardá-los e expandir a infraestrutura. A meta mais ambiciosa seria
estabelecer centros de comando e comunicações fora das zonas de conflito.
Ponto móvel. Os treinamentos
desenvolvidos pelos ex-militares são realizados em campos móveis para
dificultar a localização. De acordo com a inteligência da PM haveria centros em
seis comunidades da cidade do Rio. São áreas de mata e vielas de passagem,
isoladas pelos traficantes durante um curto período.
Encontrar os pontos de
treinamento é prioritário para as Forças Armadas. Uma possibilidade é utilizar
os Veículos Aéreos Não Tripulados (Vants) - os drones da Força Aérea no
trabalho. As aeronaves sem piloto Hermes 450, israelenses, do Esquadrão Hórus,
são capazes de voar por 20 horas acima dos 5 mil metros de altura, e seus
sensores óticos podem obter informações e imagens de dia e à noite.
Os ex-militares são
cuidadosos para não deixar rastros. Os instrutores ensinam seus aprendizes a
não produzir lixo que possa servir de pista de localização ou sinal de
passagem.
Mais que isso, os criminosos
são orientados a não ter em mãos nada que não possa ser abandonado, mesmo os
objetos pessoais.
Estadão
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