Abdelmassih e Mengele, uma questão de oportunidade.
Claro que o ex-médico Roger
Abdelmassih é um monstro. Atacava mulheres sob seus cuidados ou chefia, sedadas
ou não. Sua pena é de 278 anos de prisão, por cerca de 50 estupros (foram 90
acusações, várias prescritas ou consideradas carentes de provas). A pena traduz
esse inconformismo da sociedade com “um homem que abusava de mulheres que
deveria proteger”, ou que “abusava delas em seu momento de maior fragilidade”.
Acontece que o doutor, capturado
nesta terça-feira em Assunção, no Paraguai, onde havia se instalado numa mansão
num bairro fino (o mesmo do presidente), não é apenas um estuprador vulgar. Ele
era também um médico de grande renome e sucesso, inclusive midiático. Chamava a
si mesmo de “Dr. Vida”, em função do alto percentual de casos bem-sucedidos em
sua clínica de reprodução assistida.
Sua notoriedade começou quando
atendeu o “rei” Pelé e a então esposa, Assíria, que conseguiu engravidar de
gêmeos. Seguiu-se uma lista de celebridades, incluindo as mulheres de Fernando
Collor, Tom Cavalcante, Renan Calheiros e Gugu Liberato (Fátima Bernardes faz
questão de negar que tenha sido atendida por ele). A caríssima clínica de
Abdelmassih tinha um alto percentual de casos bem-sucedidos, por volta de 50%,
contra a média usual dos 30% de referência internacional. Ele dizia que era por
causa do alto investimento em pesquisas.
Hoje sabe-se que o Dr. Roger também
estuprava a ética médica. À revelia das pacientes, usava óvulos ou
espermatozóides não necessariamente colhidos dos casais que atendia, e inseminava
óvulos em quantidade superior ao indicado, para melhorar a margem de sucesso.
Fraudes e erros médicos eram o combustível real da sua taxa de acerto.
Dr. Roger está em boa companhia. Nos
anos 1980, o médico americano Cecil Jacobson também alucinava em sua clínica de
reprodução humana: usou seu próprio esperma em fecundações, produzindo
possíveis 75 filhos seus em clientes desavisadas. Não se sabe se o Dr.
Abdelmassih usou seu próprio sêmen. O médico mais famoso do 3º Reich, Josef
Mengele, que fugiu para a América do Sul e morreu incógnito, em 1979, em
Bertioga, no Brasil, por afogamento, é outro que juntava medicina e fetiches
pessoais.
Entre 1943 e 1944, no campo de
concentração de Auschwitz, o "Anjo da Morte" torturou e mutilou
prisioneiros em seus “experimentos científicos”, entre os quais se incluíam
afogamentos, injeções nos olhos e até a tentativa de criar gêmeos siameses
artificiais, juntando dois irmãos. Mengele ia ainda um pouco mais longe da
casinha, com um empurrão conivente do nazismo. Mas, como Jacobson e o Dr.
Roger, Mengele não tinha cara de maluco.
Tinha, isso sim, a mesma arrogância
de praticamente toda a medicina branca e ocidental diante de seus pacientes –
particularmente quando esses pacientes são mulheres. Saltam à vista casos
recentes como o de Adelir Carmen Lemos de Góes, obrigada por decisão judicial e
força policial a fazer uma cesariana indesejada em Torres (RS), e de uma
paciente de Natal (RN), ridicularizada nas redes sociais por seu obstetra após
discordâncias na condução do parto.
Com os seus respectivos graus de
perversão, o tal obstetra de Natal, chamado Iaperi Araújo, mais Jacobson,
Abdelmassih e Mengele são exemplares de um mesmo tipo de postura. A suposta
autoridade da (assim chamada) ciência sobre a intuição. Do deslumbramento
fetichista tecnológico sobre a magia natural. O jaleco faz o tarado.
Na ficção, as fantasias de Mengele
ganharam uma dimensão mais megalomaníaca. No livro de Ira Levin, depois
adaptado para o cinema, chamado Os Meninos do Brasil, o médico-carrasco alemão
combina seu gosto real por gêmeos com a especialidade em fertilização,
antecipando Jacobson e Abdelmassih. Ele cria clones de Hitler em casais que
buscam a gravidez assistida.
Meu filho nasceu em casa, sob a
orientação de uma parteira (ex-enfermeira obstétrica) e de uma xamã. Minha
ex-mulher, que tinha um parto anterior em hospital, não tem a menor dúvida de
que é melhor escolher seu canto para parir como uma gata, o mais confortável
possível, se hidratando com pedaços de melancia, do que de pernas para cima,
contra a lei da gravidade, em sofrimento, em jejum e sob a agressividade das
luzes e do escrutínio dos médicos. Parir é saúde, não doença. E a cura de
doenças, por sua vez, não é glamour. É saúde, psíquica inclusive.
No aniversário de 30 anos da primeira
fertilização in vitro do mundo, em 2007, conforme o relatado no blog de Laura
Capriglione, Abdelmassih fez uma festa opulenta, a Festa da Fertilidade, com a
presença não só de vários de seus clientes famosos, como também de Luciana
Gimenez e Hebe Camargo, que carregava animadamente um bebê de brinquedo como se
fosse real. Mais um espetáculo midiático, mais uma exibição do “poder”, mais
fetiche.
No entanto, nas rodas médicas, os
abusos de Abdelmassih eram comentados há anos, e nada se fazia. Só com a explosão
pública do escândalo a entidade de classe se mexeu para cassar seu registro.
Ele era um “poderoso”, e amigo dos “poderosos”. O ministro Gilmar Mendes, do
Supremo Tribunal Federal, mandou soltá-lo, para que ele respondesse o processo
em liberdade – e ele fugiu para o exterior, desaparecendo por quase quatro
anos.
Se entre Mengele e Abdelmassih é a
mesma postura, só com diferenças de grau, fantasia e oportunidade, assim também
é entre o nazismo e o mundo dos “famosos”. Onde Abdelmassih fez sua fama, criando
os verdadeiros “meninos do Brasil”.
Por Alex Antunes
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