Padre Edjamir Sousa Silva: O medo é um afeto político e fonte de servidão.
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Foto: Reprodução |
A Palavra de Deus neste domingo
nos leva a repensar a nossa resposta frente à missão que o Senhor tem nos
confiado. Repensar sim, pois a vocação é um dom em movimento (interior e
exterior), elaborado e reelaborado na estrada inquietante da vida, mas sempre
acompanhado do Jovem Pedagogo de Nazaré (cf. Mt 19, 21).
Jesus está subindo a Jerusalém
com os seus discípulos e discípulas, e tem plena consciência deque a meta rumo
ao Pai, passa por Jerusalém, a “cidade santa” que mata os profetas e os rejeita
(cf.Lc 13,33-34).
Os profetas muitas vezes causam
constrangimentos por suas duras denuncias; por isso, é de se estranhar que um
profeta diga ou cante que “tudo está bem!” (cf. Jr 6,13-14; Ez 13,8; Mq 3,5).
Quanto mais o Evangelho é
anunciado e vivido, mais aparecem as contradições, até dentro da mesma família:
pai contra filho e filho contra pai, mãe contra filha e filha contra mãe.
O evangelista Lucas nos diz que
nos caminhos da Galileia Jesus esforçava-se por espalhar o “fogo” que ardia no
coração das pessoas: “Vim para incendiar o mundo: e gostaria que já estivesse
ardendo!”. (12, 49). “Então um disse ao outro: ‘Não estava ardendo o nosso
coração quando ele nos falava pelo caminho’” (24, 32) e “Então apareceram
línguas como de fogo que se repartiram e pousaram sobre cada um dele” (Atos 3,
2). Ninguém imagine que repouso no Espirito seja um tranquilizante para não dar
ouvidos as injustiças. Não se engane.
Jesus deseja que o fogo que leva
dentro de si: “O Espírito do Senhor Deus está sobre mim, porque o Senhor me
ungiu; enviou-me para dar a boa-nova aos humildes, curar as feridas da alma,
pregar a redenção para os cativos e a liberdade para os que estão presos” (cf.
Isaias 61, 1ss/Lc 4, 18ss), contagie a muitos, que nunca se apague e que se
“estenda por toda a Terra” (cf Mc 16,15).
Por isso que, quem se aproxima de
Jesus vai descobrindo que o “fogo” que arde no seu interior é o amor pelo Pai e
a compaixão por aqueles que sofrem. Essa é a fé a esperança que move o
discípulo em busca do Reino de Deus e a sua justiça.
A paixão por Deus e pelos pobres
vem de Jesus, está no centro da Sua pregação, é sabedoria do alto…dos
humildes…nunca dos grandes, avarentos e mercenários. Uma paixão que só se
acende, nos seus seguidores, ao contato com o seu Evangelho e o seu Espírito
renovador/Provocador.
Uma paixão que vai além do
convencional. Que tem pouco a ver com a rotina da boa ordem, e a frieza do
comportamento normativo: “pensa que eu vim trazer a paz?” (Lc 12, 51-52). Sem
este fogo, a vida cristã acaba por extinguir-se, esfria-se a profecia e mergulha
as comunidades em meras “labaredas emocionais”: “esfriando minha cabeça e
esquentando meu coração” (canção).
O grande pecado dos cristãos será
sempre este: deixar que este fogo do evangelho se apague, ou se perca nas
ideologias das coisas secundárias e fúteis. Para que serve uma comunidade de
cristãos instalados comodamente sem paixão alguma por Deus e sem nenhuma
compaixão por aqueles que sofrem?
Jesus caminha pelo mundo
revelando a santidade de Deus: destruindo o egoísmo, a injustiça, a opressão que
arruínam o mundo a fim de que surja um Mundo Novo (cf. Ap 21, 5), marcado pelo
amor, pela fraternidade e pela justiça.
A paz é dinamismo essencial da
esperança messiânica: “Quero ouvir o que o Senhor irá falar: é a paz que ele
vai anunciar; a paz para o seu povo e seus amigos, para os que voltam ao Senhor
seu coração… A verdade e o amor se encontrarão, a justiça e a paz se abraçarão”
(Sl 84/85). O cântico de Zacarias saúda Jesus como aquele que vem “para dirigir
os nossos passos, guiando-os no caminho da paz” (Lc 1,79). Mas, se isso é
verdade, então por que Jesus diz que não veio trazer paz?
Jesus não está falando da meta da
sua ação, mas faz referência às reações das pessoas e grupos à Sua Pessoa e à
Sua proposta. Ele veio trazer a paz, mas uma paz que é vida plena para todos,
vivida na solidariedade.
A paz do Reino de Deus, aquela
que os discípulos buscam com fome e sede (cf Mt 5, 6/ Jo 4, 14. 6, 51), não
pode ser sustentada com jogos conivência, ou medo de incomodar e nada
transforma. A paz de Jesus é uma “paz inquieta”
(https://www.youtube.com/watch?v=suNz7lf6nDg) e os Seus discípulos não precisam
ter medo dela (cf. Lc 5, 10).
O filósofo Vladimir Safatle
(comentando Hobbes e Spinoza) aprofunda o significado do medo de forma muito
interessante. Para ele o medo é um afeto politico e “fonte de servidão politica
que origina, conserva e alimenta a superstição (…) para impedir o exercício do
desejo e da potencia de cada um como direito natural” (SAFATLE. V.“O circuito
dos Afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do individuo” 2ª ed. Belo
Horizonte. Autêntica, 2019. p. 101) que autocratas, narcisistas e tiranos
introjetam nos pequenos e humildes tentando impor suas ideologias repressivas
para cercear a liberdade e os direitos de uma sociedade evangelicamente
democrática. Estes não semeiam a paz de Jesus, mas o ódio que destroe e mata.
Em Jesus, a Palavra do Senhor não
é catequese das ideologias de conservação para manter sistemas intactos ou
pactuar com uma paz que não questiona a opressão (cf. Is 32, 17). A Palavra de
Deus proclamada em nossos altares, deve incendiar o mundo
(família/sociedade/escola/politica/igrejas…), colocar em causa tudo aquilo
oprime e escraviza a pessoa e a vida.
Portanto, o caminho da fé cristã
não é um passeio fácil e descomprometido, mas um percurso duro e difícil, que
não faz concessões em nome de uma paz falsa. O profeta quase sempre passa por
muitas provações para levar adiante sua missão, (Jr 38,4-6.8-10). Isso ocorre
porque eles tendem a perturbar a falsa paz que esconde as injustiças e
contradições de seu tempo.
O medo e a sensação de desamparo
são afetos que circulam, por vezes, no coração dos filhos de Deus (dentro das
estruturas de poder), mas o Senhor alimenta a esperança dos seus filhos contra
um mundo paranoico (em sociedades totalitárias): “Eis que estou convosco todos
os dias, até o fim dos tempos.” (Mt 28,20).
Paraibaonline
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