Substituição da gotinha na prevenção à pólio aumentará proteção.
Na América Latina, pelo menos 14 países já fizeram a mudança
As gotinhas que entraram para a história da imunização ao
eliminarem a poliomielite no Brasil ganharam uma previsão de aposentadoria, e a
substituição da vacina oral contra a doença pela aplicação intramuscular
significará uma proteção ainda maior para os brasileiros.
No último dia 7 de julho, o Ministério da Saúde anunciou que
vai substituir gradualmente a vacina oral poliomielite (VOP) pela versão
inativada (VIP) do imunizante a partir de 2024. A decisão foi recomendada pela
Câmara Técnica de Assessoramento em Imunização (CTAI), que considerou as novas
evidências científicas que indicam a maior segurança e eficácia da VIP.
Apesar da novidade, o Ministério da Saúde fez questão de
destacar que o Zé Gotinha, símbolo histórico da importância da vacinação no
Brasil, vai continuar na missão de sensibilizar as crianças, os pais e
responsáveis, participando das ações de imunização e campanhas do governo.
A poliomielite é uma doença grave e mais conhecida como
paralisia infantil, por deixar quadros permanentes de paralisia em pernas e
braços, forçando parte dos que se recuperam a usar cadeiras de rodas e outros
suportes para locomoção. A enfermidade também pode levar à morte por asfixia,
com a paralisia dos músculos torácicos responsáveis pela respiração. Durante os
períodos mais agudos em que a doença circulou, crianças e adultos com casos
graves chegavam a ser internados nos chamados “pulmões de aço”, respiradores
mecânicos da época, dos quais, muitas vezes, não podiam mais ser retirados.
A partir dos 2 meses
A vacinação contra a poliomielite no Brasil é realizada
atualmente com três doses da VIP, aos 2, 4 e 6 meses de idade, e duas doses de
reforço da VOP, aos 15 meses e aos 4 anos de idade.
A partir do primeiro semestre de 2024, o governo federal
começará a orientar uma mudança nesse esquema, que deixará de incluir duas
doses de reforço da vacina oral, substituindo-as por apenas uma dose de reforço
da vacina inativada, aos 15 meses de idade. O esquema completo contra a
poliomielite passará, então, a incluir quatro doses, aos 2, 4, 6 e 15 meses de
idade.
A facilidade de aplicação e o baixo custo contribuíram para
que as gotinhas tivessem sido a ferramenta para o Brasil e outros países
vencerem a poliomielite, explica a presidente da Comissão de Certificação da
Erradicação da Pólio no Brasil, Luíza Helena Falleiros Arlant. A comissão é uma
entidade que existe no Programa Nacional de Imunizações (PNI) junto à
Organização Pan-Americana de Saúde (Opas). Em 2023, o programa completa 50
anos.
"Em 1988, havia mais de 350 mil casos de pólio no mundo.
Crianças e adultos paralisados. Naquela época, o que era preciso fazer? Pegar
uma vacina oral que pudesse vacinar milhões de pessoas em um prazo curto para
acabar com aquele surto epidêmico. Eram muitos casos no mundo todo, uma
tragédia", contextualiza Luíza Helena.
Ciência evoluiu
O sucesso obtido com a vacina oral fez com que a pólio fosse
eliminada da maior parte dos continentes, mas pesquisas mais recentes,
realizadas a partir dos anos 2000, mostraram que a VOP era menos eficaz e
segura que a vacina intramuscular. Em casos considerados extremamente raros, a
vacina oral, que contém o poliovírus enfraquecido, pode levar a quadros de
pólio vacinal, com sintomas semelhantes aos provocados pelo vírus selvagem.
"Crianças com desnutrição, com verminoses ou doenças
intestinais podem ter interferências na resposta à vacina oral. Já a vacina
inativada, não. Ela protege muito mais, sua resposta imunogênica é muito mais
segura, eficaz e duradoura. Há uma série de vantagens sobre a vacina oral. Tudo
isso não foi descoberto em uma semana, foram estudos publicados que se
intensificaram a partir de 2000."
Desde então, países de todo o mundo vêm substituindo
gradativamente a vacina oral pela inativada, o que já foi feito por ao menos 14
países na América Latina. A meta da Organização Mundial da Saúde (OMS) é que a
vacina inativada substitua a oral em todo o mundo até 2030.
A presidente da Comissão de Certificação da Erradicação da
Pólio no Brasil acrescenta que a vacina inativada produz menos eventos adversos
que a oral, e também traz maior segurança para a pessoa vacinada e para a
coletividade.
Para compreender essa diferença, é preciso conhecer melhor o
funcionamento dessas duas vacinas. A oral contém o poliovírus atenuado, isto é,
ainda "vivo", porém enfraquecido, de modo que não cause mais a
doença. Já a vacina inativada recebe esse nome porque o vírus já foi inativado,
"morto", e não há mais chances de que possa sofrer mutações ou e se
reverter em uma forma virulenta.
Estudos sobre o tema têm se intensificado a partir dos anos
2000, conta Luiza Helena, e constatou-se que o poliovírus atenuado que entra no
organismo com a imunização pode sofrer mutações e voltar a uma forma
neurovirulenta ao ser excretado no meio ambiente com as fezes. Já se tinha
conhecimento dessa possibilidade, pondera a pesquisadora, mas hoje se sabe que
ela é mais frequente do que se acreditava.
"Hoje a gente sabe que o vírus mutante eliminado pelo
intestino pode acometer quem está do lado, e, se essa pessoa não estiver
devidamente vacinada, ela pode ter pólio", afirma ela, que acrescenta que
alguns fatores contribuem para elevar esse risco, como as baixas coberturas
vacinais contra a poliomielite nos últimos anos e a existência de populações
sem saneamento básico, o que pode provocar o contato com esgoto ou água
contaminada por fezes que contêm poliovírus selvagens ou mutantes.
Segundo a pesquisadora, é importante ressaltar que, enquanto
houver poliomielite no mundo, todas as pessoas estão sob risco de adquirir a
doença.
“Os vírus da pólio circulam e podem acometer qualquer pessoa.
Se essas pessoas, especialmente crianças, não estiverem devidamente vacinadas
com uma vacina eficaz, preferencialmente inativada, não estarão imunes e podem
ter a doença. Mesmo que haja um contato com o vírus, vacinados não desenvolvem
a doença.”
Baixas coberturas
Segundo o Sistema de Informações do Programa Nacional de
Imunizações (SI-PNI), as doses previstas para a vacina inativada contra a pólio
atingiram a meta pela última vez em 2015, quando a cobertura foi de 98,29% das
crianças nascidas naquele ano.
Depois de 2016, a cobertura entrou em uma trajetória de piora
que chegou a 71% em 2021. Em 2022, a cobertura subiu para 77%, mas continua
longe da meta de 95% das crianças protegidas.
O percentual a que se refere a cobertura vacinal mostra qual
parte das crianças nascidas naquele ano foi imunizada. Isso significa que não
atingir a meta em sucessivos anos vai criando um contingente cada vez maior de
não vacinados. Ou seja, se considerarmos os últimos dois anos, 29% das crianças
nascidas em 2021 e 23% das nascidas em 2022 estavam desprotegidas. Como mais de
1,5 milhão de bebês nascem por ano no Brasil, somente nesses dois anos foram
mais de 780 mil crianças vulneráveis a mais no país.
As coberturas nacionais também escondem desigualdades
regionais e locais. Enquanto o Brasil vacinou 77% dos bebês nascidos em 2022, a
cidade de Belém vacinou apenas 52%, e o estado do Rio de Janeiro, somente 58%.
Área livre da pólio
O Brasil não detecta casos de poliomielite desde 1989 e, em
1994, recebeu da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) a certificação de
área livre de circulação do poliovírus selvagem, em conjunto com todo o
continente americano.
A vitória global sobre a doença com a vacinação fez com que o
número de casos em todo o mundo fosse reduzido de 350 mil, em 1988, para 29, em
2018, segundo a OMS. O poliovírus selvagem circula hoje de forma endêmica
apenas em áreas restritas da Ásia Central, enquanto, em 1988, havia uma crise
sanitária internacional com 125 países endêmicos.
Sequelas
Com a eliminação da doença, é cada vez mais raro conhecer
alguém que viva com as sequelas da pólio, mas essa já foi uma realidade muito
mais frequente no Brasil. O ator e músico Paulinho Dias, de 46 anos, conta que
teve a doença menos de duas semanas após seus primeiros passos, com 11 meses de
idade.
"A pólio afetou meus membros inferiores. Da cintura para
baixo, afetou ambas pernas, porém, a maior sequela foi na perna direita, em que
fiz mais de dez cirurgias, entre elas de tendão, de nervo que foi atrofiando e
de alongamento ósseo, porque a perna começou a ficar curta, porque não
acompanhou o crescimento da outra. Antes dessa cirurgia, quase não encostava o
pé no chão."
Paulinho se lembra de relatos da mãe de que inúmeras crianças
no entorno também tiveram pólio. A falta de informação na época, em 1977, fazia
com que muitas famílias buscassem benzedeiras na ausência de outros recursos,
dando ainda mais tempo para agravamento dos casos e disseminação do vírus.
"Eu sempre fui a favor das vacinas, mas confesso que
nunca fui panfletário em relação a elas até a pandemia de covid-19, que a gente
viveu. E também, em pleno século 21, com o risco de a pólio voltar e o risco de
outras doenças preveníveis por vacinas voltarem por conta da desinformação,
movimentos antivacinistas, medos bobos. Sempre que eu posso, falo para as
pessoas se vacinarem, porque é um ato de amor. Vacinem seus filhos, poupem de
sofrimento."
Agência Brasil
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