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TRIBUTO A PADRE DONATO RIZZI. Por Fabiana Agra

Sábado, 29 de janeiro de 2022: eu estava passando por São Sebastião de Lagoa de Roça, quando ouvi a mensagem de Verônica: padre Donato havia falecido. Os próximos 100 quilômetros, até chegar a Picuí, passaram ante os meus olhos anuviados por um choro saudoso, porque morreu o meu primeiro professor de sociologia e de política; a próxima hora foi de um silêncio incontido dentro do carro, porque foi embora o primeiro revolucionário que eu conheci, ainda criança, naquela modorrenta Picuí do início dos anos 1980.

Início da década de 1980. A ditadura vivia os seus estertores pelas mãos do general Figueiredo, enquanto Picuí jazia em cova rasa, sufocada que estava desde o Golpe de 1964, por uma oligarquia que sequer permitira a existência, no município, do MDB – quem dava as regras na política local eram as ARENA 1, ARENA 2 e ARENA 3. Já a educação padecia à tentativa da sua privatização, capitaneada pelos generais amigos do comendador, que realmente era quem mandava em tudo, naquela Macondo esquecida pelos primeiros sopros de liberdade derramados no Brasil a partir da Anistia de 1979. A Paróquia de Picuí, então, parecia não ter SEQUER tomado conhecimento da existência do Concílio Vaticano II, porque na ICAR da paróquia picuiense, as cadeiras ainda eram carimbadas e destinadas aos membros das famílias tradicionais da cidade, aos “homens de bem”...

Julho de 1983. Padre Donato chega para assumir a Paróquia de São Sebastião de Picuí; ele fazia parte de uma leva de padres oriundos da encíclica Fidei Donum, que foram enviados pela Itália para cobrir a escassez de religiosos nas paróquias brasileiras. E tão logo chegou a Picuí, padre Donato já foi mostrando para o que viera, aposentando as cadeiras e bancos cativos da Igreja Matriz: a partir daquela data, o povo passou a ter direito a sentar-se, aonde bem entendesse, no interior da igreja; e as mulheres passaram a ter vez e voz e a se sentirem empoderadas através das ações de padre Donato! Dá para imaginar o frenesi e o ranger de dentes que tais medidas causaram entre os poderosos do lugar!?!, o “padre comunista” mal chegara, já havia angariado inimigos entre os “grandes” de Picuí. Mas o padre não arredou o pé, seguiu irredutível, pregando o verdadeiro Evangelho de Cristo – não somente em suas homilias, mas, principalmente, através do exemplo! E o padre fez mais, plantou em Picuí, a semente das ONGs, a semente do coletivo! Semente que deu frutos e que, até os dias de hoje, continua fazendo toda a diferença para o povo do lugar.

Pois é, por causa de padre Donato, a partir de 1983, a Paróquia de São Sebastião passou a ser do povo de Picuí, dos ricos e dos pobres, do povo e dos poderosos... Mas não tardou a retaliação, e o padre passou a ser perseguido, sendo que, em 1987, Donato chegou a ser colocado numa lista de religiosos a serem mortos. As comunidades católicas saíram em seu apoio e nada de grave aconteceu à sua integridade física. Já eu, recém-entrada na puberdade, seguia encantada com aquele padre! As suas ações eram o oxigênio que incendiava a chama própria da juventude; vi nascer e crescer, no meu município, as comunidades de base, os grupos de jovens e, desde então, passei a estudar os documentos existentes por trás da Teologia da Libertação e da sua opção preferencial pelos pobres. Foi por causa de padre Donato que prestei vestibular para Ciências Sociais alguns anos depois e, desde então – apesar de ter abandonado o curso -, jamais esqueci os ideários humanista e socialista.

Ah, antes que eu esqueça: dava gosto de observar os encontros, ao ar livre e geralmente na Praça João Pessoa, de padre Donato com o pastor Alício – mandatário da Assembleia de Deus de Picuí – eu nunca procurei saber o teor daquelas conversas, mas era alvissareiro sentir que os dois gigantes da fé picuiense trocavam impressões sobre seus fiéis, e aquelas conversas, para mim, já bastavam. Eram a certeza de que, em meu lugar, havia diálogo, tolerância religiosa e ecumenismo.

O tempo foi passando, e o Vaticano passou a sufocar a Teologia da Libertação; e em meados da década de 1990, coincidência ou não, padre Donato foi convocado para retornar à sua paróquia de origem, na Itália.  Sem as práticas de Donato, somadas ao sentimento de que a Teologia da Libertação não tinha mais lugar no interior da ICAR, eu larguei de mão, abandonei a religião, porque na minha visão do etéreo, importava muito mais o que eu poderia fazer pelo coletivo, pelo meu próximo, pelo “aqui e agora”, do que esse lance de “erguei as mãos e dai glória a deus” da nova teologia, que não dizia nada em meu peito; para mim sempre importou o presente, o que vem depois continuava a ser uma incógnita e perdeu todo o sentido fazer parte de uma congregação que passou a cultuar a tal da salvação individual – virei uma espécie de ateia-agnóstica-sei-lá-o-quê...

A partir dos anos 2000, abandonei todo o ideário religioso, mas jamais esqueci os ensinamentos práticos de padre Donato! Tanto é que, nas maiores dúvidas existenciais da minha luta política, corria a escrever para a Parrocchia Sacro Cuore di Gesù, de Bari, situada em Apúlia, região sul da Itália, onde padre Donato passou a ser pároco. E todas as minhas indagações, ele tratou de dissipar, através de textões! Padre Donato era phoda mesmo. Ele era demais...

Mas, but, todavia, hoje padre Donato fez a passagem. Ele se foi, ele nos deixou. Eu, em particular, fiquei mais órfã, porque a partir de agora, não terei mais a quem recorrer em termos espirituais. Mas a vida é assim mesmo, sei da finitude da vida, e sei que Donato, hoje, cumpriu a sua tarefa neste nosso lugar. E é por isso que hoje escrevo para ele, pela última vez. Somente para agradecer...

Padre Donato Rizzi, obrigada por tudo, meu velho! Obrigada pelo senhor ter chegado em Picuí justamente quando eu estava aprendendo a ser gente, quando eu estava pronta para fazer a diferença - ou não - entre meus pares. Graças ao senhor, eu fiquei do lado certo, fiquei ao lado dos oprimidos, fiquei do lado dos que nada-tem, dos que vivem da mais-valia. Obrigada, padre Donato! Agradeço ao senhor por ter me ajudado a ser uma pessoinha menos má, menos ruim, e mais humana.

Vá em paz, Donato. Se existe um céu, é lá que o senhor está, em meio aos pobres e desamparados que nada daqui levaram, a não ser a sede por justiça.

 

Obrigada por tudo, padre Donato Rizzi.

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